quinta-feira, 20 de agosto de 2020

Emergência Climática e Urgência Ética: Aportes da Bioética Ambiental sobre o autocuidado coletivo e interdependência da vida

 

Seminário Bioética e a Libertação do Futuro

por Marta Luciane Fischer

 

A temática abordada na minha fala de hoje representa a complexidade, pluralidade e amplitude das questões relativas à Bioética Ambiental. A Dualidade entre ações e impactos locais x globais, saúde física x mental e responsabilidade individual x coletiva. A fala será dividida assim em três momentos: a) A contextualização da emergência Climática; b) A sinergia entre a Bioética ambiental, ODS e urgência ética; c) As dualidades analisadas sob a perspectiva do autocuidado.

 

 A contextualização da emergência Climática

 

As questões de mudanças climáticas representam um problema ambiental que pode apresentar percepções e respostas dissonantes. Embora as alterações climáticas sejam um processo natural e foram responsáveis pela rica biodiversidade que temos na atualidade, foram intensificadas diante da intervenção antrópica. Durante os 4,5 bilhões de anos do planeta Terra, foram inúmeros eventos de resfriamento e aquecimento global, que juntamente com os movimentos das placas tectônicas possibilitaram diferentes impactos de diferentes fenômenos naturais como estiagem e enchente, furacões, tornados, tsunamis e até mesmo o maior ou menor impacto de agentes externos como os meteoros. Foram cinco grandes eventos que promoveram a extinção de 95% da fauna e flora, mas que a cada ciclo de restauração permitiam o surgimento de novas espécies. Neste momento estamos vivendo o sexto grande evento de extinção, mas diferente dos anteriores, esse é ocasionado por uma única espécie, e o mais drástico, uma espécie que sabe o que está fazendo e as consequências que sua ação poderá trazer para todo o planeta. A ação antrópica frequente e cada vez mais intensa não dá tempo para recuperação da natureza. A substituição de áreas verdes por área construída e o acúmulo de resíduos e poluição do ar, solo e água, minam a possibilidade das maiorias das espécies se reestabelecerem e não promovem um ressurgimento da vida. Pelo contrário, espécies generalistas e altamente resistentes se beneficiam de ambientes sem predadores e competidores, aumentando suas populações e dominando os ambientes alterados. Algumas dessas espécies possuem potencial de danos também para os seres humanos ou seus bens, passando a serem classificadas como “pragas urbanas” ou “pragas agrícolas” e são alvo de interesse midiático e da indústria do “controle de pragas”.

Porém estamos falando aqui de uma terminologia “emergência climática” com um viés político muito forte, a terminologia “emergência climática” foi adotada pelo Parlamento Europeu em 28 de novembro de 2019, incitando tanto a Comissão como todas as Nações à adoção de medidas urgentes para reduzir GEI considerando que o enfrentamento das mudanças climáticas demanda uma solução global e participação ativa de todos os membros da sociedade, economia, indústria de forma equilibrada e sustentável (Gonzales, 2020).  Os bastidores desse novo marco trazem uma mobilização histórica e inusitada de jovens e crianças no mundo inteiro que faltavam suas aulas as sextas-feiras para pedirem que seu futuro não fosse comprometido por decisões pautadas exclusivamente em interesses econômicos. 

A líder uma adolescente sueca de 16 anos portadora de síndrome de Asperger Greta Thunberg merecedora do prêmio de personalidade do ano de 2019. Greta toda sexta-feira protestava na frente do parlamento. Embora o alerta de pesquisadores não seja recente, os resultados do relatório do IPCC em 2018 que o planeta ficará 1,5oc mais quente transpôs o meio científico e as perspectivas das ONGs e chegou até o espaço público graças a mobilização dos jovens que se mostraram intolerantes às justificativas e medidas ineficazes tomadas nos últimos 30 anos, mesmo com tantos acordos internacionais assinados nas grandes convenções  mundiais como a conferência de Estocolmo em 72, a Rio-92 ou Eco-92 com sua agenda 21, a COPI em 1995 em Berlin, a COP2 em Genebra em 1996, a COP3 em Kyoto em 1997, a Rio+10 em 2002, a COP8 em Curitiba em 2006, a Rio+20 em 2012 .  Os fenômenos climáticos estão ficando mais extremos exemplos atuais como ciclones em Moçambique, ciclones bombas no sul do Brasil, Tufão no Japão, Onda de calor recorde na Europa, Secas na América Central, Incêndios na Austrália, Califórnia, Amazônia, nuvem de gafanhoto. O movimento dos jovens tem sinalizado mudanças na estrutura política a partir da compreensão que o comprometimento com o meio ambiente irá impactar também nas relações comerciais. Os partidos verdes têm se pronunciado na Europa.  Na ocasião Greta previu que 2020 seria o ano da ação que entraríamos em uma nova década que definirá nosso futuro. Contudo, a pandemia trouxe um novo foco, mas não totalmente destituído dessa questão.  

A pandemia da Covid-19 pode ser inserida no contexto do antropoceno (Gonçalvez 2020), Era geológica que se inicia com a industrialização e se intensifica com a capacidade humana de interferir nos sistemas ecológicos, sendo as mudanças climáticas uma das principais consequências. Neste contexto as pandemias são mais eminentes tendo em vista a interferência na natureza e a movimentação pelo planeta. Lembrando que temos muitos sinais anteriores como Ebola, Sars, Mers, H1N1 que não cumpriram com a esperada pandemia, que vivemos atualmente. No caso da Covid-19 além da ação direta na promoção do vírus transpor do animal para humano devido os impactos do manejo, tem a susceptibilidade das pessoas ao vírus em decorrência das suas vulnerabilidades físicas decorrentes da alteração ambiental. E talvez o que de mais positivo o distanciamento social trouxe foi presenciarmos como alguns dias de diminuição da atividade humana no planeta foi possível constatar uma melhorar da qualidade do ar, da qualidade sonora, da qualidade da água bem ilustrada nos canais de Veneza, e dos animais selvagens que passaram a interagir com as cidades. Não fazer nada diante dessas evidências pode ser sim uma grande imoralidade!

   A sinergia entre a Bioética ambiental, ODS e urgência ética

O impacto da industrialização e da globalização nas mudanças climáticas tem sido alvo de debates e opiniões divergentes, mesmo diante das consequências óbvias. Claro que devemos considerar que a própria alteração ambiental e o crescimento desordenado das cidades diminuem a resiliência a esses fatores e intensificam os danos.  Nas últimas décadas personalidades que variaram de Algor a Greta mobilizou diferentes segmentos sociais a conclamarem por uma agenda comunitária global. As consequências das drásticas e intensas mudanças climáticas são difíceis se imputarem um culpado e uma vítima, todos assumimos os dois papéis e isso caracteriza a pauta da Bioética ambiental: mediar o diálogo entre os atores de uma questão complexa, global e plural. Os papeis de agente moral e paciente moral se alternam dependendo da perspectiva hierarquia em que se processa a esfera decisória, e justamente a multiplicidade de agentes morais subsidiados por valores e interesses próprios retroalimentam as vulnerabilidades em um ciclo contínuo de sofrimento moral. Essa concepção já percorre os corredores da academia há quase 50 anos. Na década de 1970 muito se discutiu sobre os excessos cometidos ao ambiente em nome da promoção da revolução industrial. O término das grandes Guerras deixou lacunas de tecnologia e processos de produção da indústria bélica que se voltaram para os bens de consumo munindo o capitalismo e tornando o foco da maioria das nações.  A Educação ambiental e a Bioética emergiram nessa época, justamente alertando ao mundo científico de que se algo não fosse feito, se novos valores, paradigmas, perspectivas não fossem incorporados a sobrevivência planetária seria severamente comprometida. Potter cunhou a terminologia Bioética como a ética da sobrevivência! O diálogo entre as ciências biomédicas e humanas em busca de valores comuns! Se por um lado essa perspectiva ambiental não se sustentou na Bioética (que acabou se fortalecendo no segmento médico), as práticas de educação ambiental foram prontamente incorporadas em grandes eventos e acordos internacionais e em diretrizes e políticas públicas, legislações foram construídas em prol da sustentabilidade. Na década de 2000 o mundo se mobiliza em um acordo internacional sendo instituídos 8 objetivos para serem alcançado em uma agenda até 2015. Contudo, a constatação que a ausência da perspectiva de sustentabilidade não promoveu alcançar as metas, foram propostos 17 novos objetivos que devem ser alcançados até 2030.  Esses objetivos são mais do que acordo entre nações, são posturas individuais que se alcançam com a educação e inclusão. O ponto mais notável é a redução das desigualdades entre as nações, povos e pessoas que não têm as mesmas oportunidades de superarem seus desafios.  Especificamente o Objetivo no 13 versa sobre a questão das mudanças climáticas, mas é necessário fazer a ressalva que serão impactados por outras demandas como a pobreza e desigualdades socais. Em 2018 a ação o Caminho do diálogo, que visa promover a conexão entre academia e ensino básico discutiu os ods e existe um capítulo especialmente para essa questão de Ana Laura Diniz Furlan, Fernanda Schneider e Lays Cherobim Parolin “Mudanças climáticas: Que climão, hein?” que recomendo!



A globalização, o rápido desenvolvimento tecnológico e o capitalismo imputaram nas sociedades problemas novos e desafiadores, pois não possuem referenciais biológicos ou morais para qual a decisão mais sensata. É justamente buscando remediar essa lacuna que a Bioética Ambiental se insere, na busca de ouvir o outro e confluir interesses e valores em prol de uma solução consensual e justa para todos. Nesse caminho a ferramenta é a comunicação, alteridade, solidariedade. A urgência ética está justamente na compreensão da necessidade de mudança de paradigma. Não é apenas compreender o problema e se sensibilizar com as consequências, mas compreender racionalmente e emotivamente como ator da questão e se posicionar criticamente com autonomia para que as mudanças ocorram.

A Urgência Ética é inserida no princípio da responsabilidade de Hans Jonas (valverde, 2017) e remete a mudanças de condutas que já não são optativas ou realidades de alguns grupos sociais, são sim emergenciais, condicionais para superação de um problema global. Ética pois remete a valores utilizados nas decisões (em todos os níveis hierárquicos) de como, por que e quanto consumir, diz respeito a sacrificar benefícios e interesses pessoais em prol de um bem-comum, de uma coletividade. Logo, demanda de uma mudança de paradigmas de toda uma sociedade, alcançado com somente com a reformulação em todos os níveis!

 

As dualidades analisadas sob a perspectiva do autocuidado

         

       Pode parecer estranho inserir o autocuidado nessa narrativa, uma vez que o mesmo é compreendido na perspectiva individual e física no gerenciamento das necessidades para manutenção do organismo biológico. Todos os seres vivos praticam o autocuidado, e a maturidade traz a expectativa de cada sujeito seja hábil de cuidar de si e do outro. Contudo, sabemos que da perspectiva da saúde global não há existência isolada, que a saúde depende de conexões entre corpo/mente/espirito  entre individuo/sociedade/ambiente, em escalas locais/globais e que cuidar de si é não atribuir essa responsabilidade pro outro, que cuidar do social é proporcionar para si e para o outro um ambiente social acolhedor, que cuidar do ambiente é proporcionar um ambiente saudável para todos aqueles que se conectam, tudo aquilo que Edwarda Wilson na teoria da biofilia, Capra na perspectiva da “teia da vida” e  atualmente Harari com as 21 lições para sec XXI que nos brinda com a reflexão de que a ausência de presença tem colocado o ser humano vulnerável. Nessa nova realidade ter clareza dos fatos, condutas e consequência é o poder. As pessoas estão preocupadas demais em resolver suas urgências pessoais. Harari observa as grandes forças que dão forma às sociedades em todo o mundo, e que provavelmente vão influenciar o futuro do planeta como um todo. Para o autor, a mudança climática pode estar muito além das preocupações de quem está em meio a uma emergência de vida ou morte, mas pode futuramente tornar as favelas de Mumbai inabitáveis, enviar novas e enormes levas de refugiados através do Mediterrâneo, e levar a uma crise mundial dos serviços de saúde. Mudar a perspectiva de valores, interesses e cuidados do individual para o coletivo é transpor de indivíduo para sujeito, o cidadão autônomo e protagonista e sabe das suas responsabilidades e gerencia as responsabilidades dos gestores nomeados para essa função, que liberta o futuro de uma tragédia anunciada ou de um sonho encantado, mas que vislumbra na ação comunitária, consciente, solidária, comprometida e presente a única forma de alcançar um futuro factível para todos. 


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Referências

 

GONZÁLEZ, Karla Zambrano. La Unión Europea ante la emergencia climática. Anuario Español de Derecho Internacional, v. 36, p. 429-447, 2020.

GONÇALVES, Verônica Korber. Covid-19 e a emergência climática: conexões e desafios. Le monde diplomatique Brasil. São Paulo, SP.(17 abr. 2020), online., 2020.

VALVERDE, Antonio. Hans Jonas e o princípio responsabilidade. Revista Dissertatio de Filosofia, p. 137-150, 2018.

https://www.crmpr.org.br/uploadAddress/O-Caminho-do-Dialogo-2[4100].pdf

 

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