quarta-feira, 13 de agosto de 2014

Vacas fistuladas: pesquisa ou espetáculo? Impacto Bioético dos princípios da não maleficência, não interferência, fidelidade e justiça restitutiva



Série Ensaios: Bioética Ambiental

Por Ana Lúcia C. Ribeiro e Luana de Assis
Mestrandas do programa de Pós Graduação em Bioética da PUCPR


Vacas fistuladas, ou “vacas com janelas”, são usadas como cobaias em experimentos científicos – através de um procedimento cirúrgico, os animais têm um buraco aberto no estômago para se observar o processo digestivo. A fistulação é uma técnica que consiste na abertura cirúrgica e exposição de uma parte do sistema digestivo de animais, como bovinos e ovinos, mundialmente conhecida e realizada há mais de um século por diversos países, como o Brasil. Depois que a abertura é feita, um tubo é inserido, permitindo o acesso ao orifício e propiciando seu fechamento através de uma tampa. Os cuidados com os animais são os mesmos dedicados à qualquer cirurgia: uso de anestésicos, antibióticos e higiene do local, a fim de evitar infecções e dor aos animais. Dentre os objetivos da fistulação listados pelos pesquisadores, destacam-se a simples observação do funcionamento do sistema digestivo, a análise do líquido ruminal nas diferentes etapas da digestão, o que permite a análise de micro-organismos e enzimas para a produção de etanol, o desenvolvimento de estratégias de redução do metano entérico, a melhoria da dieta dos animais, o que propicia a melhoria de sua produtividade e reprodução.
Segundo a EMBRAPA (2014), os procedimentos cirúrgicos de fistulação de animais são realizados por profissional médico veterinário e todas as medidas de antissepsia e anestesia, bem como cuidados pré e pós-cirurgicos, são devidamente seguidas. O procedimento é indolor e não causa sofrimento ao animal. Este é acompanhado até a cicatrização completa, sendo só então utilizado pela pesquisa. A partir daí, os cuidados veterinários são contínuos e permanentes. Além disso, destaca-se que se utiliza o mínimo de animais necessários para as avaliações cientificas, respeitando os princípios éticos de experimentação animal. Com os cuidados tomados, normalmente não há implicações fisiológicas nos animais. Porém, alguns relatos descrevem casos de desidratação e desnutrição do animal fistulado devido ao vazamento de rúmen pela fístula. Algumas imagens mostram como este vazamento ocorre.
A utilização de animais em pesquisas científicas tem sido bastante contestada nos últimos anos. A partir da década de 1970, o debate sobre as considerações éticas envolvendo a utilização de animais cresceu de forma acentuada e com diferentes visões acerca da conceituação de bem-estar animal entre os diversos profissionais que atuam diretamente com esses seres e também entre a população de uma forma geral. A experimentação animal é definida como toda e qualquer prática que utiliza animais para fins didáticos ou de pesquisa (LEVAI, 2004), excluindo-se os animais humanos. O termo “experimentação animal” abrange desde a mais simples e inofensiva observação visual até procedimentos complexos, com intervenção cirúrgica. Dessa forma, pode-se observar que são utilizadas em duas vertentes básicas: para um maior conhecimento dos animais e aplicação desse conhecimento em sua própria saúde e bem-estar e, a forma mais frequente, a utilização de animais como modelos e posterior aplicação dos conhecimentos gerados para a espécie humana. A pesquisa em animais deve ter como diretrizes mínimas: definição de objetivos legítimos, imposição de limites a dor e ao sofrimento, fiscalização de instalações e procedimentos, garantia de tratamento humanitário e responsabilidade pública. No caso do uso das vacas como experimentação, os pesquisadores argumentam que ocorre melhoria das condições de saúde dos ruminantes, melhoria da quantidade e qualidade do leite e da qualidade da carne. Em contrapartida, para defensores dos direitos dos animais, as fistulas estão sendo utilizadas como forma de atrair crianças e possíveis estudantes em eventos, como um verdadeiro show de horrores e essas aberturas podem trazer prejuízos a saúde dos animais. (ANDA, 2014)
Pesquisadores que estudam as reações dos animais reconhecem que eles possuem consciência e memória e são capazes de sofrer, sentir dor, ter medo e lutar pela vida. Portanto, alcançar o bem estar dos animais na experimentação é uma tarefa um tanto quanto difícil, principalmente quando estes sofrem intervenções cirúrgicas e passam a ser considerados como atração para visitantes, como no caso das vacas. Diferentemente de pesquisas com seres humanos, que podem consentir autonomamente se querem ou não participar do experimento, alguns princípios éticos que foram considerados aqui são o da não maleficência e o da não interferência e se o devido cuidado, respeito e liberdade são preservados. Ambos os princípios devem garantir que não se causa mal de qualquer forma ao animal e também não se interfira no estado natural para interesses próprios. Além disso, os animais são extremamente fiéis e qualquer dano provocado a eles, pode ser uma forma de quebra da confiança aos humanos depositada, gerando a não fidelidade.
Os benefícios alcançados com a utilização de animais em pesquisas são inegáveis. No entanto, é necessária a avaliação do cumprimento de alguns princípios éticos, como a não maleficência, a não interferência, a fidelidade e a justiça restitutiva, que podem auxiliar na reflexão sobre a validade e a real importância dos resultados destes experimentos. Não maleficência significa não causar mal a qualquer entidade natural – salvo em prol da própria vida – quando os meios empregados são proporcionais a ameaça. Afinal, qual o bem proporcionado aos animais fistulados? Após mais de um século de pesquisas, talvez seja necessário deixar explícitos os resultados das pesquisas que auxiliaram no desenvolvimento da vida desses ruminantes, ou seja, a comprovação da beneficência aplicada aos animais. É difícil acreditar que a existência de uma fístula permanente não traga algum desconforto pela simples presença, e muito menos quando pessoas inserem mãos e braços no interior dos animais. A não interferência limita os atos humanos que restrinjam ou impeçam a liberdade de outro ser vivo – portanto, interferir no estado natural de animais para interesses humanos é negar liberdade. Não há dúvidas que animais fistulados não estão em seus estados naturais e, portanto, têm sua liberdade quebrada. A fidelidade determina que ser fiel é não quebrar a confiança estabelecida pelo animal. Como pode um animal com a liberdade restrita confiar nos homens que a restringiram? Se ao menos a justiça restitutiva fosse aplicada, ou seja, aquela que determina que toda atitude do agente que acarrete dano no paciente deve ser compensada. Mas, qual a compensação dada a estes animais?
Nós, futuras bioeticistas, acreditamos na importância dos estudos desenvolvidos e concordamos que, em muitos casos, ainda não há formas que substituam o uso de animais, mas questionamos o fato da exploração de animais por mais de 100 anos – quanto tempo mais será necessário? Alcançar as amplitudes éticas exige esforço pessoal e coletivo. Portanto, é fundamental ainda que as instituições mantenham comissões de ética operantes que avaliem a necessidade de uso de animais e que fiscalizem como o animal está sendo mantido e manipulado durante e após o término do experimento.


O presente ensaio foi elaborado para a disciplina de Fundamentos da Bioética, baseando-se nas obras encontradas nos sites e referências abaixo relacionadas:

LEVAI, L.F. Direitos dos animais. Campos do Jordão, SP. Editora Mantiqueira, 2004.
http://www.brasilescola.com/biologia/animais-fistulados.htm

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