Por Fabiana
Francielle Culau Leite
Acadêmica do curso de
Mestrado em Bioética
A
domesticação animal necessitou muito tempo e levou milênios da evolução para
alcançar a relação com humanos que conhecemos atualmente. Os cães selvagens
tornaram-se fiéis e companheiros de caça ao longo de milhares de anos. Segundo
FILHO (2013, pág. 51) essa relação entre humanos e canídeos começou há 15 mil
anos, com a primeira divisão de trabalho entre os sexos da espécie humana,
quando o homem passou a caçar para garantir o sustento familiar e a mulher
cuidava da coleta de frutos dos filhos, sendo ela a responsável pela aproximação
das duas espécies conforme pesquisas zooarqueológicas.
Em
contrapartida a origem felina é difícil de ser comprovada de forma definitiva considerando-se
o fato de que gatos não contribuem significativamente com ações humanas em
termos de trabalho ou caça. Tradicionalmente acreditava-se em uma origem egípcia,
entretanto descobertas recentes acreditam que a domesticação ocorreu no Crescente
Fértil, há cerca de 10 mil anos, sugerindo que os gatos
começaram a se aproximar dos povoados de agricultores para se aproveitar dos
restos de alimentos e camundongos. (DRISCOLL, et. al., 2013, pág. 36).
Em
um contexto histórico, essa relação entre homens e animais transcorre
diferentes fases e entendimentos. Na Europa, entre os Séculos XVI e XVII a
afeição por felinos era normalmente atribuída à mulheres acusadas de bruxaria.
Os gatos domésticos não tinham boa reputação quando o Brasil foi colonizado
pelos portugueses e só foram considerados bons companheiros domésticos na Europa
por volta do Século XVIII e por aqui por volta do Século XX. Já os cães eram considerados
animais impuros pelo fato de se alimentarem de carniça, comportamento este que deu
origem à expressões com conotação negativa e depreciativa como: “vida de cão” e
“ele é o cão”. Foi apenas a partir do século XVII que a população européia
passou a ver os caninos como sinônimo de fidelidade e coragem. (ELIAS, 2010,
pág. 26,27). Ao que diz respeito à domesticação canina, várias hipóteses foram
formuladas, desde considerar que a princípio foram os próprios caninos que
optaram por viver perto dos homens por conta da facilidade em alimentação, até
a versão mais tradicional que considera:
“Há cerca de 40 mil
anos, grupos de lobos (Canis lupus)
que viviam no Leste Asiático perceberam que poderiam obter alimento mais
facilmente seguindo os humanos. Isso porque caçadores-coletores viviam se
deslocando e deixando para trás um nutritivo lixo, composto de restos de ossos,
cartilagens e alguns resíduos de carne. Mas um estudo do DNA de cães e lobos
publicado na revista Nature em março
de 2010, indica o Oriente Médio como o lugar mais provável do surgimento de
Canis lúpus familiaris, nosso cão doméstico.” (ELIAS, 2010, pág. 39)
Há de se ressaltar essa relação
entre homens e animais, sabe-se que a domesticação foi um dos eventos mais
significativos da história humana que vem se configurando ao longo da evolução.
Para DELARISSA e MATIOLLI (2013), a proximidade afetiva com os bichos foi herdada
de nossos antepassados. Contudo, atualmente essa relação está se tornando mais
complexa, as pessoas sem se dar conta passaram a estreitar cada vez mais sua
relação com os animais de companhia, tornando-os provedores de afeto e alívio
para suas angústias. “Uma das motivações
comuns dos seres humanos, transmitida pelo processo filogenético (referente à
evolução da espécie), está vinculada ao nosso passado tribal: o comportamento
do homem contemporâneo guarda traços herdados dos caçadores-coletores.” (DELARISSA
& MATIOLLI, 2013, pág. 63)
Atualmente
– com o advento da vida moderna, da correria das grandes cidades e da
necessidade de praticidade – os indivíduos optaram por um modelo familiar
diminuído ou então pela vida solitária e por inúmeras vezes os animais de
estimação, em particular os cães ou gatos, tem servido como substitutos
de amigos, de um ente familiar ou de uma criança, já que embora
necessitem de alguns cuidados, não exigem muita atenção. Essa opção por um
adquirir um animal de companhia, muitas vezes, decorre do fato de os bichos
parecem seguros quanto a própria “identidade” e
não se preocupam com o julgamento de seus pares. Já o homem preocupa-se com seu
lugar na sociedade, compreende e precisa “agregar valores” a si mesmo e a quem
representa ou acredita ser. Já, para o cachorro, o grupo humano ao qual
pertence se torna sua matilha, e nela ele identifica um líder. A parceria
formada desde muito cedo entre cães e humanos provavelmente tem sido favorecida
por essa predisposição comum para viver num “ambiente tribal”. (DELARISSA &
MATIOLLI (2013, pág. 65-67).
A escolha por um objeto de afeto que não necessite
de grande investimento, embora exija alimentação, companhia e um pouco de
carinho muitas vezes está associada ao fato do bicho não fazer cobranças e
muito menos exigências. De acordo com MARCONDES (2013, pág. 74), o Brasil tem
98 milhões de animais de estimação segundo dados da Associação Nacional de
Fabricantes de Produtos para Animais de Estimação (Anfalpet). Os números são
impressionantes e é compreensível questionar as razões da existência dessa
quantidade de animais de estimação (pet em
inglês, do verbo to pet, afagar,
acariciar), bem como investigar os mecanismos sociais e psicológicos que nos
levam a nos identificar com eles. Existe
muita expectativa por parte dos humanos ao adquirir um animal de estimação. É
possível observar nas redes sociais, a partir das publicações diárias, o que os
indivíduos esperam ao adquirir um pet. Uma imagem publicada
na rede social Facebook e
em um blog
ilustram
a relação esperada entre o dono e seu animal de companhia:
Além
das relações de afeto, muitas vezes os animais de estimação são adquiridos com
objetivo de contribuir para melhorar a saúde física ou mental de seus donos,
embora os benefícios que eles trazem para a saúde sejam questionados por alguns
pesquisadores, já que segundo afirmam, não se tem comprovação de que sejam duradouros.
“É fato que cada vez mais os bichinhos têm ocupado lugar de destaque na vida
das pessoas – e não raro, recebem a “responsabilidade” de suprir carências
afetivas profundas de seus donos.” (LILIENFELD & ARKOWITZ, 2013, pág 33). É
notório destacar que a presença dos pets reduz os níveis de estresse, dentre
outros benefícios destacados pelo Journal
of the American Association of Human-Animal Bond Veterinarian (AAHABV)
através de um estudo feito pelos pesquisadores Johannes Odendaal e Susan
Lehmann (LEAL, 2013, pág 29,30), dentre eles a interação entre cães e humanos
que deflagra, em ambos, a liberação de substâncias que diminuem a ação do
cortisol (hormônio do estresse) provocando sensação de bem-estar.
Os
animais são excelentes companheiros,
principalmente para crianças, contudo a maioria das pessoas apenas projeta suas
expectativas em relação ao animal e não consideram o fato de que estes também
apresentam de alguma forma, emoção. Charles Darwin em
1872 afirmou que dadas as impressionantes similaridades entre o comportamento
humano e o animal, que ninguém pode negar que os bichos tem um lado emocional. Para
Damásio (apud WILHELM, 2013, pág
22,23), os animais possuem emoções primárias: medo, raiva, tristeza, entre
outras e emoções sociais: simpatia, vergonha, culpa, gratidão embora seja
difícil provar que animais possuam esta capacidade de autorreflexão. O
pesquisador Jaak
Panksepp (apud WILHELM,
2013, pág. 22,23), especialista em comportamento e pesquisador da Universidade
Estadual de Bowling Green, Ohio afirma que as emoções estão relacionadas à
regiões cerebrais encontradas em todos os mamíferos, embora apenas os humanos
sejam capazes de refletir sobre os próprios sentimentos, controlá-los e
fingi-los.
Diversos
estudos que avaliam o metabolismo animal, fornecem evidências que os sentimentos
animais não se diferenciam dos sentimentos humanos, considerando-se os
processos neuronais comuns à todos os mamíferos. Embora não seja possível uma
comprovação mais precisa dos sentimentos conscientes dos animais, importante
salientar que tanto os humanos quanto os não humanos compartilham de emoções e
sensações semelhantes e por esta razão ao optar por ter um animal de companhia,
vale salientar que este também precisa de companhia, atenção, além de água e
ração, conforme ilustrou o cartunista Will Leite:
Apesar
da relação entre as espécies, muitas vezes ser ambígua, já que mescla dominação
e afeto, a proximidade com o homem nem sempre é benéfica para o animal, já que são
inúmeros os casos de abandono[1]
e descaso com os animais. Por esta razão ao optar por incluir um não humano na
rotina diária, vale ressaltar que deve ser uma escolha responsável, já que o
animal pode não corresponder com as expectativas do dono e que assim como qualquer
outro mamífero está sujeito à depressão, estresse e a um comportamento
diferente daquele imaginado. Rever nossas responsabilidades éticas, morais e
legais com outras formas de vida que compartilham o ambiente que vivemos é
fundamental para ambos, já que numa visão antropomorfista, todos animais apresentam
alguma forma de emoção e merecem muito mais um pouco de água e um prato de
ração.
O presente ensaio foi elaborado para a disciplina de Bioética e
Bem-estar Animal e baseado nas seguintes obras:
DELARISSA, Fernando
Aparecido; MATTIOLI, Olga Ceciliato. A
relação subjetiva entre homens e bichos se transformou; hoje o animal faz parte
da família. Mente e Cérebro. São Paulo. Ed. Especial N.º 39. Página 60-67.
Setembro/outubro 2013
DRISCOLL, Carlos A. A Longa e Fascinante Domesticação do Gato.
Scientific American Brasil. Edição Especial Vida anival. N.º 56. Página 36-39.
ELIAS, Rodrigo. Santos animais. Revista de História da
Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro. Ano 5. N.º 60. Página 25-28 Setembro 2010
FILHO, Nelson Aprobato
Filho. Fidelidade e Traição entre Cães e
Seres Humanos. Scientific American Brasil. Edição Especial Vida anival. N.º
56. Página 50-53.
LEAL, Gláucia. Terapeutas de Quatro Patas: tê-los por
perto diminui o estresse, favorece processos cognitivos, concentração,
criatividade, além de ajudar pessoas doentes a enfrentar tratamentos
desconfortáveis. Mente e Cérebro. São Paulo. Ed. Especial N.º 39. Página
29-30. Setembro/outubro 2013
LILIENFELD, Scott O.;
ARKOWITZ, Hal. Na companhia dos bichos:
Animais de estimação podem contribuir para melhorar a Saúde física e mental de
seus donos, mas a duração desses efeitos causa divergências entre pesquisadores.
Mente e Cérebro. São Paulo. Ed. Especial N.º 39. Página 33-37. Setembro/outubro
2013.
MARCONDES, Ana. Mesmo sem perceber, pessoas tendem a buscar
companheiros com os quais se identificam. Mente e Cérebro. São Paulo. Ed.
Especial N.º 39. Página 74. Setembro/outubro 2013.
WILHELM, Klaus. Um jeito de sentir: Quem gosta de bichos
não duvida que seus companheiros de estimação expressam simpatia, indignação e
gratidão. Porém os cientistas fazem distinção entre respostas e estímulos e a
interpretação das próprias emoções. Mente e Cérebro. São Paulo. Ed.
Especial N.º 39. Página 26,27. Setembro/outubro 2013
Meio Eletrônico:
http://solidariedadeanimal.blogspot.com.br/2008/03/no-abandone-seu-melhor-amigo.html Acesso em 22/09/2013
https://www.facebook.com/SoAnimaiss?ref=ts&fref=ts Acesso em 22/09/2013
http://www.willtirando.com.br/ Acesso em 22/09/2013
http://institutoanchietanodepesquisas.blogspot.com.br/2012/12/o-que-e-zooarqueologia.html Acesso em 30/01/2014
http://mundopetmagazine.blogspot.com.br/2012/08/o-culto-aos-gatos-no-egito-antigo.html Acesso em 30/01/2014
http://descobrindohistoria.com.br/2013/08/resumo-crescente-fertil/ Acesso em 30/01/2014
https://www.facebook.com/photo.php?fbid=10152164897457608&set=pb.238330577607.-2207520000.1391131774.&type=3&theater Acesso em 30/01/2014
https://www.facebook.com/photo.php?fbid=10151853336557608&set=pb.238330577607.-2207520000.1391131981.&type=3&theater Acesso em 30/01/2014
http://pt.wikipedia.org/wiki/Lobo Acesso em 30/01/2014
http://pt.wikipedia.org/wiki/Charles_Darwin Acesso em 30/01/2014
http://brainsciencepodcast.com/bsp/the-origin-of-emotions-with-jaak-panksepp-bsp-91.html Acesso em 30/01/2014
[1] O Centro
de Zoonoses de São Paulo recolhe das ruas cerca de 10 mil animais por ano,
e outros 3 mil são levados pela população. Os animais ficam por três dias à
espera do dono no CCZ, os animais saudáveis e sociáveis são vacinados,
vermifugados, castrados e encaminhados para adoção. Os demais são eliminados. Fonte: Scientific American Brasil (2013)