Uma reflexão pela Despedida do Martin Afonso (7.7.2002-29.8.2009)


Estou bastante triste hoje, pois perdi “meu bichinho”, o Martin Afonso.

O Martin Afonso ficou exatos sete anos com a gente. Foi um grande companheiro e atribuo a ele grandes conquistas emocionais. Ele morreu muito cedo, o que faz lamentar mais ainda a sua ausência. Apesar de trabalhar com etologia e muitas vezes fazer dele meu laboratório (e exemplo em minhas aulas) não consegui estabelecer uma distância emocional e me envolvi totalmente com ele e agi como um proprietário comum, cometendo todos os erros que considero extremamente nocivos tanto pra mim quanto pra ele... O Martin era ímpar em vários aspectos. Ele nasceu com mais três irmãs e durante três meses de sua vida viveu com 5 fêmeas, o que conferiu a ele uma personalidade de líder e altamente territorial. A mãe o rejeitou assim que nasceu, o que fez dele um cão extremamente infantilizado em outros aspectos. A característica mais notória dele era mamar a ponta de um travesseiro como se estivesse mamando na teta da mãe, fazendo até os movimentos das patinhas pra sair leite. Fazia isso logo que eu chegava em casa e após tomar leite. Isso mesmo depois de adulto. O Martin era um cão pequeno que andava sem coleira e odiava ficar sozinho. Intermediava um misto de dominância e dependência sobre mim, em vários momentos eu não conseguia interpretar muito bem qual ele estava exercendo. Quando eu estava em casa ele me seguia por todos os lugares, porém quando queria ir para outro cômodo exigia minha boa vontade em me deslocar para lá, irritantemente me pressionando ao olhar fixamente pra mim, depois gemendo, chorando, latindo e por fim gritando.... Ele ocupava um importante lugar na nossa família, intermediava relações afetivas e responsabilidades, sendo um importante elo integrador... Ele ainda está em todos os lugares da casa, inconscientemente o ouço, sinto sua presença, seus movimentos e seu cheiro... E envolvida com todas as emoções e sentimentos oriundos da perda do “meu bichinho” não tenho como não refletir na louca relação inter-específica que os seres humanos desenvolveram com seus animais. Essas reflexões estão acompanhadas de fotos de vários momentos do Martin Afonso em minha vida!

O cão é o mais antigo dos animais domésticos, pois vindo dos lobos - animais com sociedades complexas como as nossas - estabeleceram um canal de comunicação que desencadeou uma mútua identidade de grupo. Provavelmente não exista na natureza uma relação interespecifica tão forte e intermediada de tantas emoções e sentimentos como existe entre o homem e seu cão, ou se preferirem entre o cão e o seu homem.
A relação é antiga datando mais de 25.000 anos, sendo que a cerca de 12.000 anos foram encontrados cães e homem enterrados juntos e os gregos acreditavam que a alma do cão acompanhava o seu dono no paraíso. O homem da caverna atraia cães selvagens para entrada da sua “casa” devido às suas sobras de alimento. Com o tempo essa relação oportunista se tornou simbiótica, uma vez que o homem dava o alimento e o cão limpava a sujeira, propiciava proteção, companhia, divertimento, afeto. A quem acredite que até calor, ao aquecer seu dono nas noites frias. Apesar da enorme barreira da linguagem para comunicação, o homem e o cão compartilham emoções e sentimentos similares que superaram essas barreiras. E são justamente as compensações emocionais que fazem o homem trazer esses animais para dentro das suas casas, mudar sua rotina, alimentar, cuidar, levar no veterinário, vestir, tolerar latidos e mordidas, além de objetos destruídos e cheiro de urina por toda a casa (Revista Mente & Cérebro
ed. 169 - Fevereiro 2007).

Ao levar o cão para dentro de suas casas, ele aos poucos foi se fundindo com a família e participando da dinâmica da casa permeando e construindo as relações hierárquicas, territoriais e afetivas. O canal de comunicação afetiva entre o homem e cão faz com que o homem sinta uma intensa satisfação e felicidade em participar da alegria do cão, na maioria das vezes exibindo uma relação mais intensa e verdadeira do que com seus coespecíficos, provavelmente por não ter que “controlar” sua instintiva tendência de dar e receber carinho.
O homem pode se relacionar com o animal biológico de maneira prática alimentando-o, dando-lhe banho, levando-o ao veterinário, exigindo resultados de adestramento. Porém interage também com o animal psicológico, criado através da imagem que faz de seu animal. A questão é se essa relação pode é altruística ou egoísta, pois além do homem poder exercer um certo “domínio” e “controle” sobre um ser dependente dele (se sentindo dono de alguém ou necessário para existência de alguém), também pode acolher o animal por esse lhe proporcionar um relacionamento muito mais fácil do que com outro ser humano. Uma vez que, além do animal estar sempre disponível é infinitamente mais tolerante, oferece amizade incondicional sem julgamentos, supre a carência de afeto sem pedir nada em troca e é fonte segura e previsível de afetos. A inclinação humana para alimentar outro, a disposição para compartilhar e buscar companhia além da necessidade de contato físico direto foram pontos favoráveis nessa relação. A necessidade de contato vem dos nossos ancestrais primatas que usavam a catação (grooming) como forma de reatar elos do grupo. O contato físico entre pessoas nem sempre é fácil ou bem-aceito socialmente (exceto no contexto sexual), o animal doméstico costuma oferecer-se ao afago e suprir muito bem essa demanda.

Inúmeros estudos atuais mostram que são efetivos no desenvolvimento emocional de crianças e melhora o sistema imunológico e circulatório de doentes e idosos. Em termos psicológicos os cães resgatam a criança interior e aumentam a capacidade de amar sendo: alívio para situação tensa; disponibilidade ininterrupta de afeto; faz a pessoa rir; representa companhia constante; dá amizade incondicional; proporciona contato físico; dá proteção e segurança; a presença do animal faz a pessoa ter o que fazer; ajuda a resgatar ou estimular aspectos lúdicos e cognitivos.
O cão foi programado para seguir um líder da matilha e para o primeiro sinal de fraqueza se impor. Estudos recentes indicam que os animais interagem com as pessoas não a partir das intenções ou sentimentos delas, mas respondendo ao seu comportamento. Já as pessoas reagem ao comportamento dos animais atribuindo-lhes sentido com base em seu próprio referencial. Assim, na ausência de comunicação verbal, pode-se criar significados próprios à reação do animal e automaticamente uma maior liberdade de expressão dos sentimentos, sendo um canal para comunicação com seu próprio mundo interno, valores e sentimentos (Revista Mente & Cérebro
ed. 169 - Fevereiro 2007). Starling et al (http://culturapsi.vilabol.uol.com.br/animal.htm) fazem uma consideração muito interessante da relação com os animais de estimação, pois eles não são telas onde se projetam os sentimentos bloqueados, uma vez que reagem a esses sentimentos, mesmo não compreendendo nossa linguagem, compreendem sinais das expressões corporais. Devido ao fato de assumirem um papel afetivo dentro da família, o animal fica totalmente vulnerável aos ideais e conflitos desta família, o que poderá desencadear uma resposta adequada ou patológica, podendo apresentar "distúrbios" psíquicos, quando vive em um contexto desestruturado. Nesse ponto podemos questionar se essa relação é tão boa para os animais quanto é para homem. O fato do homem dar banho, colocar roupa, conversar e passear com o animal preso em uma coleira é o suficiente par ao cão se expressar como espécie? Será que aqueles momentos de “ternura” “afeto” são compartilhados igualmente e o animal sente bem-estar e prazer na companhia do seu dono. Será que pra eles esses “bons momentos” compensam o estresse de ficar preso no apartamento, comer ração, sentir solidão durante todo o dia? É fácil julgar e criar teorias quando não se está dentro desse contexto todo que pode ter sido criado artificialmente, mas que é fato na nossa sociedade. Será que foi mais uma das estratégias de sobrevivência do homem? Podemos refletir sobre muitos pontos, ponderar muitas questões, mas o ponto principal é que hoje estou sentindo um vazio imenso, pode ser mesmo que de fato eu criei um “se sentimental” via de comunicação entre meu eu exterior e interior e hoje eu choro pela sua morte. Mas tudo isso está materializado nessa fofura que faz uma falta danada!