Série Ensaios: Bioética em Foco
Por Marta Luciane Fischer
Nas últimas três semanas tive o prazer de ser presenteada com a oportunidade de conviver com uma rolinha (Zenaida auriculata). Estigmatizada pela superpopulação que apresentam nas áreas urbanas e rurais, são muitas vezes confundias com a pomba (Columa livia), que ao contrário da nossa rolinha, é uma espécie exótica invasora. A rolinha é uma espécie generalista que se adapta facilmente a ambientes alterados e no uso de recursos alimentares alternativos. Apenas por essas características já é um animal digno de admiração, pelo menos para mim. Vamos deixar de lado todo transtorno que causam para as pessoas, edificações e plantações... superar os desafios de um ambiente antrópico, com tanta movimentação, barulho e substratos irregulares... merece aplausos!
Fazia um tempinho que eu não entrava na minha varanda (estamos no inverno) e para minha surpresa quando acessei o local uma noite uma rolinha saiu se debatendo e, então, percebi que ela tinha feito um ninho sobre uma prateleira onde deixo coisas aleatórias que uso pouco (bagunçinha básica). E no ninho, surpresa!! dois ovinhos. De imediato minhas expectativas não foram muito boas, tendo em vista que estávamos nos dias mais frios do ano e não sabia se ela voltaria depois do estresse que sofreu pela minha entrada abrupta.
Mas ela voltou e me trouxe seu primeiro ensinamento: persistência e dedicação. Ela passava os dias plena sobre seus ovos. Eu olhava para ela e percebia a presença e integridade no momento, sem ansiedade, insegurança ou divisão de tarefas... Apenas esse olhar que me direcionava, que me dizia claramente (mesmo diante de uma expressão facial não obvia) que estava me observando e acredito eu, contanto com a minha compreensão.
Em alguns dias nasceram dois filhotinhos, e clima estava ainda mais frio. Não me contive e deixei algumas quirelas à disposição. A segunda lição veio com a relatividade do tempo, era como se tudo ali ocorresse em uma velocidade acelerada, mas normal... sem estresse com o tempo e se dará tempo, só deixando ser... As modificações de um dia para o outro eram fantásticas. Não consegui identificar se havia um revezamento entre macho e fêmea. Mas tenho a impressão que em alguns momentos estava mais agitada e sensível a aproximação e em outras me deixava chegar bem perto. O que me levou a considerar serem dois. O me levou ao terceiro ensinamento: não julgar!, pois eu já estava imputando a rolinha o status da mãe solo empoeirada que precisa de uma rede de apoio para combater os abusos à fêmea desamparada. De fato, quatro nesse ninho não rola!
Os dois filhotinhos estavam crescendo bem, uma graça! e eis que em uma manhã gelada eu presencio a pãe jogando um filhotinho para fora do ninho. Não sei se ela jogou ele vivou ou já morto, quando vi estava congelado... Meu coração ficou partido, fiquei tão triste! Mas olhando agora de fato, não caberia três naquele ninho.
Então duas semanas se passaram, a distância de fuga quase zero. Após a quarta vez que entrei na sacada, a pãe já deixou de se agitar, no máximo, uma vocalização, inflava a pena e escondia o filhote de mim... A pãe ficava a maior parte do dia sobre o filhote, plena e integra. Porém nos dois últimos dias ela começou a ficar mais tempo fora do ninho e o filhote cada vez mais impaciente quando ficava sozinho. Quinta lição: todos temos diferentes interesses, enquanto a função demandava dedicação dela ela correspondeu, mas depois ela passou a se dedicar a outros interesses.
Essa foi a última imagem dele antes de ir... Eu sei que é a ordem natural, mas não deixo de já sentir falta... Falei que a rolinha é mais madura do que eu...
E ficou o ninho vazio e a expectativa que eles voltem para se aconchegarem um pouco, e quem sabe boas memórias estimule novas ninhadas... e a última lição: como uma experiência com uma outra espécie pode ser tão rica. Com certeza não esquecerei esse nosso breve encontro, a oportunidade de vivenciar a experiência de um outro ser, sem domínio, sem poder, sem cativeiro... O mundo precisa disso, que as pessoas admirem os animais com quem convivem, que respeite a natureza daqueles pelos quais se tornou responsáveis, que não queiram imputar desejos e necessidades a seres que almejam apenas existir. Não julgue-os por serem classificados como pragas, feios, estranhos ou perigosos.. apenas aprecie e se aprecie apreciando eles!
E por fim o último aprendizado do meu convívio com o Gruuu, olhar ao redor... pq hoje quando estou na rua olho pro céu, para edificações, para as árvores, para os pássaros... esperando vê-lo só mais uma vez, para saber se está tudo bem!