sexta-feira, 10 de dezembro de 2021

O consumo durante a Pandemia por Covid 19 impactou na regra Biocêntrica da Não Interferência?



Séries Ensaios: Bioética Ambiental



Por Maria Claudia Hahn Ferrucio e Marcos Aurélio Trindade
Médica intensivista e Psicólogo e Filósofo



]A pandemia por COVID 19 com suas novas necessidades, ajustes de gastos e mudanças de comportamento, interferiu drasticamente nos hábitos de consumo da população. Afinal de contas, este período de isolamento propiciou fortemente a digitalização das compras, o consumo de máscaras, luvas e desinfetantes, assim como o abuso no uso de sacolas plásticas e embalagens de isopor por conta dos deliverys. Tudo isso com consequente impacto no ecossistema e habitat natural de plantas e animais humanos e não humanos.

De acordo com o SEEG (Sistema de Estimativas de Emissões e Remoções de Gases de Efeito Estufa), todo esse consumo, somado à restrição das atividades de reciclagem por receio da propagação do vírus, trouxe impactos ambientais preocupantes, com um descarte inadequado de resíduos e um amontoado de lixo se acumulando na natureza.

No começo da pandemia a inquietude era por conta das vidas humanas. Assim, embalagens descartáveis, máscaras e luvas não eram preocupação prioritária quanto à poluição ambiental. Entretanto, a necessidade de isolamento e as novas tendências de consumo trazidas pela pandemia persistiram, e os resultados estão sendo desastrosos.


A Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais (Abrelpe), estima que as medidas de quarentena e isolamento social geraram no país um aumento de 15% a 25% na quantidade lixo residencial. Já para os resíduos hospitalares, o cálculo é de um crescimento de 10 a 20 vezes.

Um consumo e descarte cujas consequências já estão aparecendo. Conforme noticiado no site do Conselho Regional de Medicina Veterinária do Estado de São Paulo (CRMVSP), “Pandemia pode aumentar poluição nos oceanos com maior consumo de embalagens - Cerca de 80% das tartarugas marinhas morrem pela ingestão de resíduos, principalmente, plástico”, demonstrando que, com a pandemia e o maior consumo de embalagens, a poluição nos oceanos tende a aumentar e com ela as consequências negativas à vida marinha.
Vê-se, portanto, que dentro do contexto pandêmico, que assolou a saúde da sociedade, acometida pelo medo, pela miséria e colapso econômico, há ainda a poluição ambiental. Assim, deve-se refletir sobre as graves crises ambientais geradas pelo excessivo consumo neste período de produtos não biodegradáveis (como as já citadas embalagens plásticas e de isopor, máscaras descartáveis, luvas), atingindo de forma bastante negativa a vida vegetal e animal não humana, e interferindo na biodiversidade e ecossistema.
De acordo com a Associação Internacional de Resíduos Sólidos (ISWA), 25 milhões de toneladas de resíduos sólidos chegam aos oceanos todos os anos, e 50% desse valor é de plástico, material que mais afeta os animais marinhos.
Com o acúmulo desse lixo nos mares, observa-se uma quebra do princípio da não interferência proposto pelo biocentrista Paul Taylor, em seu livro, “Respect for Nature”. A proposta apresentada no livro é que decisões e ações, relativamente ao meio ambiente, sejam baseadas em quatro regras obrigatórias: não-maleficência, não-interferência, fidelidade e justiça restitutiva. Neste ensejo, dentre esses princípios destaca-se a não interferência. A não interferência é a regra que visa limitar os atos humanos que de alguma forma produzam impedimento ou restrições à liberdade de organismos individuais, afirma Felipe. Essa regra biocêntrica admite que os animais sofram danos através de causas naturais. Cadore e Gomes, 2014, trazem que a não interferência não permite que o ser humano interfira a fim de evitar a extinção de determinada espécie ou de reparar desequilíbrios ambientais naturais.
Os dois deveres estipulados pela não interferência, que seriam “evitar atitudes que ocasionem em bloqueio à vida animal ou vegetal” e “permitir que as criaturas selvagens usufruam sua liberdade” Felipe aponte que, são completamente quebradas e desrespeitadas com a poluição nos oceanos, pois pode-se gerar, além da morte por ingestão dos resíduos, alterações congênitas e hormonais, sofrimento, deformações físicas e a diminuição ou interrupção da cadeia alimentar, uma vez que há a morte de algumas espécies importantes para o processo, de acordo com o CRMVSP.
O momento da pandemia exigiu e está exigindo às políticas de saúde, e atenção à vida da população humana, mas é necessário também que se prestem monitoramento e fiscalização para com o lixo e como este descarte inadequado prejudica a regra da não-interferência nos ecossistemas.
Sendo assim, o consumo e poluição gerados pela ação humana não são viáveis para a construção da saúde ecológica e seu desenvolvimento sustentável. A sociedade necessita da conscientização e distribuição solidária em favorecimento da preservação do meio ambiente, e que todas as formas de vida possam seguir livre e sem interferência do homem.
Deve-se atentar aos agravos que a própria intencionalidade humana age em relação ao detrimento do meio ambiente. O que está em jogo é exatamente o futuro de todas as formas de vida no planeta e do próprio planeta.

O Papa Francisco, em sua EncíclicaLaudato Si, em 2015, 5 anos antes da COVID-19, já trazia suas preocupações a respeito da poluição, geração de resíduos, cultura do descarte, transformando a Terra em um grande depósito de lixo.
A pandemia reforçou a catástrofe da crise planetária em que se vive, vinculada ao fomento da grande degradação mundial no quesito poluição. Como evitar que as ações humanas interfiram drasticamente no futuro cosmológico das próximas gerações, tanto dos homens quanto das outras espécies de animais? Infelizmente, as consequências trazidas pela pandemia da COVID 19 não se resumem àquelas relacionadas às perdas dos entes queridos, aos problemas econômicos, à educação e aos transtornos psicológicos do isolamento. As repercussões se estenderam ao meio ambiente, pois, pelo consumo e geração contínua de lixo da humanidade, os habitats naturais e as vidas de plantas e animais estão sendo destruídos.
Por isso, nós, como futuros bioeticistas, acreditamos que a conscientização e o respeito da população são muito importantes. Vocês podem estar se perguntando: como a população pode contribuir de forma positiva? Devemos nos atentar que não é apenas a preocupação com o isolamento e o uso de máscaras. Mas fazendo sua parte na separação correta do lixo. Além da já conhecida separação dos lixos residenciais em orgânicos e recicláveis, é importante saber onde descartar luvas e máscaras. O descarte correto desses materiais, conforme explica Guimarães, para não impactar e interferir de forma negativa na vida das plantas e animais, deve ser feito no lixo comum, e nunca no reciclável. É uma pequena atitude que não apenas contribui para a preservação da liberdade animal e a regra da não interferência, mas que tem uma grande relevância ambiental e impacto sobre todos os ecossistemas.

O presente ensaio foi elaborado para a disciplina de Bioética Ambiental do PPGB, tendo como base as obras:


CADORE, C. B. M.; GOMES, D. Experimentação animal: o direito, a moral e a ética. VII Anais de Iniciação Científica IMEP - Problematizar, Pesquisar e Publicar, p. 1–12, 2014.

CRMVSP. Pandemia pode aumentar poluição nos oceanos com maior consumo de embalagens. Cerca de 80% das tartarugas marinhas morrem pela ingestão de resíduos, principalmente, plástico. Disponível em: <https://crmvsp.gov.br/pandemia-pode-aumentar-poluicao-nos-oceanos-com-maior-consumo-de-embalagens/>.

FELIPE, S. T. ANTROPOCENTRISMO, SENCIENTISMO E BIOCENTRISMO: Perspectivas éticas abolicionistas, bem-estaristas e conservadoras e o estatuto de animais não-humanos. Revista Páginas de Filosofia, v. 1, n. 1, p. 1–29, 2009.

FRANCISCO, P. Carta encíclica Laudato Si - sobre o cuidado da Casa Comum - Papa Francisco. [s.l: s.n.].

GUIMARÃES, S. Medidas de isolamento aumentam a quantidade de lixo doméstico e hospitalar. Observatório de Justiça e Conservação, v. 4, 2020.

SEEG. NOTA TÉCNICA IMPACTO DA PANDEMIA DE COVID-19 NAS EMISSÕES DE GASES DE EFEITO ESTUFA NO BRASIL, 2020. Disponível em: <https://www.oc.eco.br/wp-content/uploads/2020/05/SEEG-OC_Nota_Tecnica_Covid19_Final.pdf>

A Crise hídrica e a Alteridade

 

Série Ensaios: Bioética Ambiental

 

Por Esther Barbosa de Araujo e Liliane Mayumi Swiech

 Licenciada em Ciências Biológicas e Médica Geriatra Paliativista

 

A crise hídrica nunca foi um tema tão em voga quanto em 2021. No Paraná há vários municípios em Estado de Alerta e outros já no sistema de Racionamento. A crise afeta a população na totalidade, pois diante da escassez de água há dificuldade em manter as atividades básicas do dia a dia, sem contar a influência negativa sobre as plantações e criações de animais. Estamos diante da pior crise hídrica dos últimos 91 anos, consequência do aumento do consumo de água, do uso inadequado de recursos, mau uso dos mananciais e seus solos, e escassez do nível de chuvas.

Historicamente, o Brasil depletou cerca de 15,7% de sua superfície de água nos últimos 30 anos. No ano de 2020 este déficit equivaleria a 16,6 milhões de hectares. Assim, os reservatórios nunca estiveram tão baixos e as mudanças nunca foram tão urgentes. Diante disso, propõe-se fundamentar o problema da crise hídrica pautado no princípio bioético da Alteridade.

O princípio da Alteridade tem seu marco a partir do filósofo Emmanuel Levinas em 1974. Nela, o outro ocupa lugar de prioridade, mesmo diante de uma relação não recíproca. Seguidamente, muitos outros autores discutiram este tema, como o filósofo Buber em 1979, o filósofo Dussel em 1984, o teólogo Susin em 1987, a psicóloga Zanella em 2005.Todos concordam que a individualidade é uma grande causadora de crises. Ao enaltecer o conceito da Alteridade, ressalta-se o senso de responsabilidade pelo outro, e isso corrobora para o desenvolvimento de ações responsáveis.

Assim, conforme a ministração da disciplina da Bioética Ambiental, chegamos à conclusão de que podemos ferir o princípio da alteridade quando não pensamos no uso adequado e consciente da água, no sentido de que outros indivíduos também precisam usufruir desse bem natural, sendo esse recurso finito. Portanto, podemos agir nessa situação como agentes morais, tomando decisões que afetam terceiros, podendo ser também pacientes morais, já que outros podem tomar decisões sobre o uso da água que nos afetam e levam a crise hídrica e racionamento da água.


É possível inferir também que ao não tomarmos responsabilidade sobre nossa participação no mundo, ferimos o princípio da alteridade, ou seja, são necessárias tomar ações pensando no bem coletivo e não no benefício individual. Assim, estaríamos agindo de forma responsável ao realizar a participação consciente na sociedade visando políticas que vão de encontro com pautas ambientais, políticas de inclusão e pensamentos conforme a alteridade, para considerarmos o outro.

Nós, como futuros bioeticistas, concordamos que o princípio da alteridade pressupõe também que o “eu” não existe sem o “tu”, ou seja, sem as relações psíquicas, sociais, afetivas que estabelecemos com o outro, não existimos. Nesse sentido, a coexistência de pessoas em uma mesma sociedade, a coexistência de diferentes formas de vida na terra, de diferentes ecossistemas depende do princípio da alteridade e do entendimento de que sozinhos não há vida para nós e nem para o outro. Portanto, realizar medidas que considerem o outro e a coletividade como, por exemplo, ser consciente sobre uso da água, evitar desperdício e tomar ações que condizem com esse princípio, traz a possibilidade de manter uma vida estável para o 'eu' e para todos.

Nossa contribuição para o mundo no sentido da crise hídrica e se propondo a não ferir o princípio da alteridade seria o uso consciente do recurso hídrico, evitando o desperdício, alternativas do uso da água, exigência da modificação que os sistemas de produção atual possuem, conscientizar as demais pessoas acerca da crise hídrica e do recurso finito da água. Tudo isso considerando que não existimos sozinhos no mundo e precisamos contribuir para o outro e vice-versa. 

 

O presente ensaio foi elaborado para disciplina de Bioética Ambiental do Programa de Pós Graduação em Bioética (PPGB), tendo como base as obras:

 

Modelli, L. (2021). Brasil perdeu 15% dos seus recursos hídricos em 30 anos, uma perda de quase o dobro da superfície de água de todo o Nordeste. G1 Notícias. https://g1.globo.com/natureza/noticia/2021/08/23/brasil-perdeu-15percent-dos-seus-recursos-hidricos-nos-ultimos-30-anos-uma-perda-quase-o-dobro-da-superficie-de-agua-de-todo-o-nordeste.ghtml

Ribeiro, V. (2021). Brasil enfrenta a pior crise hídrica em 91 anos. Radio Agência Nacional. https://agenciabrasil.ebc.com.br/radioagencia-nacional/economia/audio/2021-09/brasil-enfrenta-pior-crise-hidrica-em-91-anos#:~:text=O Brasil enfrenta a pior,59%25 da capacidade esta semana.

 Bonis, M. de. (2009). Ética da alteridade nas relações entre Biossegurança em saúde e Bioética. Ciências & Cognição, 14(3), 92-102–102.

Hossne, W. S.; Segre, M. (2011). Dos referenciais da Bioética – a Alteridade. Revista - Centro Universitário São Camilo;5(1):35-40

Mendes, A. A. P., Burcii, L. M., Stigar, R., Hauer, R. D., Moraes, S. H., & Ruthes, V. R. M. (2016). O princípio da alteridade como pressuposto para a bioética clínica: em busca de novos aportes epistemológicos. Thaumazein: Revista Online de Filosofia, 10(19), 55–66. https://www.periodicos.unifra.br/index.php/thaumazein/article/view/1817/pdf

RPC Cascavel. (2021). Crise hídrica: Paraná tem 13 cidades em estado de alerta e outras 18 com racionamento de água. Disponível em: <https://g1.globo.com/pr/parana/noticia/2021/09/07/crise-hidrica-parana-tem-13-cidades-em-estado-de-alerta-e-outras-18-com-racionamento-de-agua.ghtml. >  Acesso em 08 de novembro de 2021

Segre, M. (2011). Dos referenciais da Bioética – a Alteridade. 5(1), 35–40. Disponível em: https://saocamilo-sp.br/assets/artigo/bioethikos/82/Art04.pdf