por Marta Luciane Fischer
A Declaração Universal dos Direitos dos Rios surgiu de movimentos globais preocupados com a relação da humanidade com a natureza, principalmente por entenderem que ecossistemas naturais possuem valor intrínseco, independentemente de qualquer benefício econômico, social, cultural, estético ou espiritual que possam trazer para os seres humanos. A organização de ativistas, cientistas e ambientalistas Earth Law Center formalizou a declaração em 2017 passando a ser adotada mundialmente como referência por movimentos e campanhas em defesa dos direitos ambientais ao redor do mundo, além de balizar legislações e políticas públicas na garantia de proteção mais efetiva aos corpos d'água. Tendo os movimentos e legislações que tratam a natureza como um sujeito de direitos os princípios básicos da Declaração incluem como direitos fundamentais:
Direito à existência – O rio tem o direito de existir e fluir.
Direito à manutenção do ciclo natural – O rio tem o direito de realizar suas funções naturais dentro de seu ecossistema.
Direito à regeneração e restauração – Se um rio for prejudicado, ele tem o direito à recuperação natural e à regeneração de suas funções.
Direito de ser protegido da poluição – Os rios têm o direito de não serem poluídos e de terem suas águas preservadas em condições saudáveis.
Direito a não ser privatizado – O rio deve ser tratado como um bem comum e não como uma propriedade privada.
Direito à defesa legal – Os rios podem ter representantes ou defensores legais para proteger seus direitos em tribunais.
Atualmente diferentes rios ao redor do mundo têm sido reconhecidos como sujeito de direitos, fortalecendo o movimento globalmente, principalmente em países que possuem laços culturais profundos com a natureza ou enfrentam desafios ambientais críticos. O Rio Vilcabamba, localizado na província de Loja, no sul do Equador, foi o primeiro rio no país a ser reconhecido como sujeito de direitos em 2011, após uma decisão judicial histórica. A decisão veio após uma ação legal movida por cidadãos locais contra um projeto de expansão de uma rodovia. A Constituição do Equador e da Bolívia se diferenciam por reconhecerem os direitos da natureza, baseados na filosofia do ‘bien vivir’ e na Lei dos Direitos da Mãe Terra, consagram o direito de os ecossistemas, incluindo rios, existirem, prosperarem e se regenerarem. Na Colômbia, o Rio Atrato, localizado na região de Chocó também foi reconhecido como detentor de direitos próprios, como parte de uma ação para proteger o ecossistema da degradação causada pela mineração ilegal e pela poluição. Em 2017, na Nova Zelândia o Rio Whanganui foi reconhecido como sujeito de direitos, após uma longa luta do povo Māori, que considera o rio um ancestral sagrado. O governo da concedeu personalidade jurídica ao rio, permitindo que ele seja representado por dois guardiões legais: um nomeado pelo governo e outro pelos Māori. Em 2017, o Tribunal Superior de Uttarakhand, na Índia, declarou os rios Ganges e Yamuna como entidades jurídicas com direitos, para proteger esses rios da poluição e degradação ambiental. O tribunal nomeou autoridades locais como os "pais legais" responsáveis por proteger os rios. No entanto, a decisão foi posteriormente suspensa pela Suprema Corte da Índia, gerando um debate contínuo sobre o tema. Em 2021, o Rio Magpie, localizado em Quebec, foi reconhecido como sujeito de direitos em parceria entre comunidades indígenas Innu e grupos ambientais locais, buscando proteger o rio de danos ambientais e garantir seu fluxo natural. Em 2022, um tribunal no México reconheceu o sistema fluvial que deságua na Baía de Todos os Santos como sujeito de direitos, o que incluiu medidas de proteção e regeneração da bacia hidrográfica. No Brasil, o movimento está nas fases inicias destacando o reconhecimento do Rio Doce como sujeito de direitos em 2018, após o desastre ambiental causado pelo rompimento da barragem de Mariana.; do Rio Araguaia em 2019 e recentemente do Rio São Francisco.
Atribuir o status de sujeitos de direito a um Rio significa reconhecê-los como entidades jurídicas que possuem direitos próprios, da mesma forma que uma pessoa ou uma organização. Importante ressaltar que a maioria das constituições reconhecem a natureza como objetos de direitos, bem-comum, patrimônio natural ou bens móveis. Consequentemente, qualquer dano a natureza ou animais é contestado considerando o prejuízo causado às pessoas ou comunidade humanas. Assim, dotados desses direitos os rios deixam de serem tratados como objetos que podem ser possuídos ou explorados, passando a serem respeitados e protegidos seus direitos à preservação, à regeneração, ao fluir livremente e à manutenção de seu ecossistema. Obviamente que essa concepção visa garantir uma proteção mais robusta permitindo que ações legais sejam tomadas em seu nome, sendo possível designar guardiões ou defensores para representar os interesses do rio em processos judiciais. A ideia de fundo se alicerça nos princípios do direito ambiental, da ética e bioética ambiental que reconhecem que a saúde dos ecossistemas naturais, incluindo os rios, é essencial para o bem-estar de todas as formas de vida.
Ao tornar um rio sujeito implicações significativas ocorrem em diversas esferas pois visa transformar a forma como a sociedade interage com a natureza, promovendo um tratamento mais equitativo e sustentável. As implicações ambientais são as mais óbvias, pois implica na implementação de medidas mais rigorosas de preservação e recuperação ambiental, incluindo a restauração de áreas degradadas, a revitalização de flora e fauna aquáticas e a mitigação de impactos da poluição e da exploração econômica, preservando o fluxo natural e a qualidade da água. Como implicação global vislumbra-se a mitigação da crise climática, considerando ciclos hidrológicos de massas de água superficiais, subterrâneas, aéreas e congeladas e consequentemente na preservação dos ecossistemas terrestres que se estabelece às margens dos rios.
Socialmente o reconhecimento dos direitos dos rios valoriza a conexão com as comunidades que dependem deles para subsistência, cultura e sobrevivência. Comunidades vulneráveis como as indígenas, ribeirinhas e tradicionais, que frequentemente têm relações simbióticas com os rios, veem seus direitos e saberes tradicionais reforçados. Contudo, as populações urbanas podem ter garantido que o uso de seus recursos seja regulado e compartilhado de forma mais justa, combatendo a privatização excessiva ou o controle monopolístico da água. Consequentemente, espera-se que o movimento promova conscientização sobre a importância da preservação da água e do ecossistema fluvial, educando a população sobre o valor intrínseco da natureza.
Na esfera ética atribuir direitos a um rio redefine a relação tradicionalmente antropocêntrica, em que a natureza é vista como um mero recurso para ser explorado. A transposição para valores ecocêntricos e biocêntricos admite que outras formas de vida e ecossistemas têm valor moral por si mesmos, prenunciando a responsabilidade ética das sociedades e governos com o comprometimento coletivo em proteger a natureza. Contudo desafios legais e regulatórios demandam pela criação de novas estruturas legais e institucionais para garantir que esses direitos sejam efetivamente respeitados e protegidos. Acrescido da transformação de políticas públicas voltadas ao desenvolvimento econômico, como projetos de mineração, construção de hidrelétricas e agricultura intensiva. Logo, o desafio político será equilibrar as demandas econômicas com a proteção ambiental, maior fiscalização e controle sobre atividades que impactam a água e os ecossistemas. Obviamente que serão impactas aquelas empresas que se beneficiam de recursos hídricos, como mineradoras, agroindústrias e indústrias químicas, afetando modelos de negócios que não se adaptem à nova realidade. Consequentemente haverá necessidade de investimento em projetos de recuperação ambiental, conservação dos rios, regeneração de ecossistemas degradados, práticas mais sustentáveis, tecnologias limpas, ecoturismo, manejo sustentável da água e agricultura de baixo impacto ambiental e potencial de economia circular.
Pensando na proteção da água como um bem comum e garantia de que seja tratada como um direito humano, acessível a todos foi criado no Canadá em 2009 um movimento global denominado “Blue Community" visando é promover a gestão pública da água, reconhecê-la como um direito humano e eliminar o uso de água engarrafada em instalações públicas. Para que uma comunidade seja considerada "Blue," ela deve adotar três princípios centrais: reconhecer a água e o saneamento como direitos humanos, promover a gestão pública e comunitária da água, e banir a venda de água engarrafada em eventos e locais públicos. Esses princípios refletem a oposição à privatização e à comercialização da água, buscando garantir que o acesso à água limpa seja equitativo e sustentável, tanto para as pessoas quanto para o meio ambiente. O movimento tem se expandido globalmente, com cidades, escolas e organizações ao redor do mundo aderindo, incluindo locais na Europa e América Latina. Em 2023 a PUCPR recebeu o selo de Blue University, reforçando o compromisso técnico e ético na preservação da água.
Ao lado da PUCPR passa um Rio tipicamente curitibano, o Rio Belém, cuja nascente está localizada no bairro Cachoeira, nos arredores do Parque das Nascentes do Rio Belém, e desagua nas cavas do rio Iguaçu. Sua bacia hidrográfica abrange 87,80 km² de área drenada, e sua extensão é de 17,13 km. O seu leito é margeado por ciclovias, ruas, parques, casas e indústrias que alteraram sua fisiografia e hidrodinâmica. Na década de 1930, teve sua extensão retificada, onde um trecho do rio com 17,8 km passou a ter 7,2 km, no centro da cidade, área intensamente urbanizada, consequentemente foi canalizado para dar espaço as construções. Teve suas margens devastadas e ocupadas irregularmente, e lançamentos de esgoto são encontrados com frequência por todo seu comprimento recebendo o título do rio mais poluído da cidade, tal como a comunidade da PUCPR pode presenciar todos os dias. (Para mais detalhes assista ao documentário do PLUG sobre todo o percurso do Rio Belém aqui).
Estamos vivendo momentos difíceis no enfrentamento da intensidade e frequência de fenômenos ambientais. Todos os dias os noticiários trazem imagens impactantes de incêndios, estiagem, enchentes, furações, temperaturas extremas, terremotos, desastres ambientais, desmatamento e inúmeras pessoas e animais refugiados de seus locais de moradia. Embora a conscientização das pessoas parece estar aumentando, o que percebemos é uma diminuição no engajamento para mudar a realidade. De fato, o problema é muito complexo, envolve muitos atores, interesses e valores, por isso mais do que nunca a Bioética Ambiental se fez necessária. Sua natureza interdisciplinar, dialogante, capaz de identificar e mitigar vulnerabilidades e mediar debates. A deliberação coletiva é necessária e urgente, para problemas comuns, é necessário que haja comprometimento coletivo. Não basta fazer a minha parte desconectada dos outros atores que fazem parte da rede intrigada de conexão que é a existência. Nesse momento de formação técnica, ética e humanística de profissionais do futuro é fundamental que se olhe ao redor e paulatinamente se inclua em sua rede de conexões os elementos humanos e naturais que os cercam. Que tal começarmos com nossa casa? Nossa casa pode ser o Universo, o Planeta, o País, o Estado, a Cidade, o Bairro, a Casa, o Corpo físico, mental e espiritual. A PUCPR é nossa casa e a água o elemento fluido que conecta corpos, espaços geográficos e temporais em uma rede contínua de movimento e vida. Que tal começarmos a pensar do rio que é nosso vizinho, que partilha conosco todos os amanhecer e entardecer, os desafios e as vitórias? Então te provoco a pensar: o que significaria para nós se a partir de hoje o nosso Rio Belém fosse também um sujeito de direito?
Obs: as imagens que ilustram esse ensaio foram criadas pela inteligência artificial generativa copilot, com exceção da foto do rio Belém autoria própria.