quinta-feira, 30 de janeiro de 2025

É Gente ou Água? Rios como Sujeitos de Direito, Ética, Alteridade e Bioética.


Luana Florentino Fonseca   - Advogada 
Marcio Henrique Cardoso - Médico


 


No século XXI, pode parecer até estranho falar sobre "rios como sujeitos de direito", não é mesmo? Essa ideia é realmente inovadora, especialmente porque desafia a visão antropocêntrica que ainda predomina em nossa sociedade. O antropocentrismo, como sabemos, é a ideia de que o ser humano ocupa o centro de tudo, sendo considerado o ser mais importante. Esse pensamento influencia quase todos os aspectos da sociedade moderna e frequentemente serve de justificativa para a exploração irresponsável dos recursos naturais, sem levar em conta as consequências para o futuro. O filósofo Mauro Grün, conhecido por suas reflexões sobre o antropocentrismo e suas implicações na relação entre o ser humano e o meio ambiente, resume o conceito de maneira clara: "O homem é considerado centro de tudo, e todas as demais coisas no universo existem única e exclusivamente em função dele." Esse pensamento ainda permeia a sociedade contemporânea, muitas vezes legitimando o consumo excessivo e insustentável dos recursos naturais. O reconhecimento dos rios como sujeitos de direito quebra essa lógica ao nos convidar a vê-los não apenas como recursos, mas como partes essenciais de um sistema do qual também fazemos parte. Essa abordagem ressignifica nossa relação com a natureza, propondo um olhar ético e empático, que nos leva a perceber os rios como seres vivos com direitos próprios, e não como meros instrumentos para o nosso uso. Aqui entra o princípio da alteridade, inspirado em Emmanuel Lévinas,filósofo francês nascido em uma família judaica na Lituânia. Lévinas nos ensina que a ética começa no encontro com o outro, seja uma pessoa ou a natureza. Esse princípio nos convida a reconhecer e respeitar a alteridade do outro, entendendo-o como distinto e digno de consideração, o que se aplica perfeitamente à nossa relação com os rios e o meio ambiente. Alteridade é sobre respeito e cuidado, enquanto o utilitarismo vê os rios apenas como fonte de água ou energia. A alteridade nos desafia a reconhecer o valor intrínseco dos rios, essenciais para a vida no planeta. Vejamos: os rios refletem nossas escolhas sociais. Poluição e degradação mostram negligência, enquanto projetos de revitalização, como o do Rio Belém em Curitiba, apontam que é possível mudar nossa relação com a natureza – obvio que o essencial seria não precisar de revitalização, em razão de prejuízo causado pelo comportamento humano.
Queremos dizer, e reconhecer os rios como sujeitos de direito não é apenas uma questão ou um conceito legal, mas trata-se também de uma transformação ética que promove uma convivência mais sustentável. Cabe lembrar: Epistemologicamente, a palavra "sustentável" está ligada à ideia de algo que pode ser mantido ou sustentado ao longo do tempo, sem comprometer os recursos necessários para sua continuidade. Derivada do latim "sustentare", que significa "sustentar, apoiar ou manter", o termo reflete uma compreensão multidimensional que integra aspectos ecológicos, sociais e econômicos. No campo do conhecimento, "sustentável" implica uma visão crítica e holística, reconhecendo a interdependência entre seres humanos, natureza e recursos. Esse conceito vai além do simples uso eficiente de recursos, abrangendo um compromisso ético com o equilíbrio entre atender às necessidades do presente e preservar a capacidade das gerações futuras de suprirem as suas. A sustentabilidade, nesse sentido, é tanto um desafio quanto uma responsabilidade compartilhada, que exige uma abordagem integrada e consciente sobre como coexistir no mundo. Durante o V Congresso Internacional Ibero-americano de Bioética, a Monja Coen destacou que a harmonia com o meio ambiente é essencial para nossa sobrevivência e espiritualidade, sendo necessário desenvolver consciência ecológica e ações responsáveis para proteger o planeta. Em sua fala, ressaltou que a natureza é um organismo vivo. Nesse sentido, reconhecer isso é reconhecer o óbvio: precisamos dos rios não apenas como recurso material. Afinal, a Terra, conhecida como planeta azul, tem 70% de sua superfície coberta por água. Desse total, 97,5% é salgada, e apenas 2,5% é doce. Ainda, do pouco que é doce, 69% está em geleiras, 30% em águas subterrâneas, e apenas 1% em rios e lagos (dados da ANA). O Brasil possui a maior rede hidrográfica do mundo (IBGE Educa), evidenciando a importância do ciclo hidrológico e sua interdependência com todos os seres vivos. Compreender que os rios têm um ciclo próprio, independente da intervenção humana, nos faz enxergar que sua única "dependência" é não serem prejudicados por nossas ações. Da mesma forma que as pessoas possuem autonomia como sujeitos de direitos, os rios também têm seu curso natural, essencial para o equilíbrio do planeta. Respeitá-los e reconhecê-los como sujeitos de direito é, em última instância, respeitar a vida e garantir os direitos de todos os seres humanos. Neste sentido, como futuros bioeticistas, compreendemos que adotar uma perspectiva bioética fundamentada na alteridade é fundamental para enfrentarmos os desafios ambientais. Essa abordagem nos impulsiona a reconhecer a interconexão entre todos os seres, promovendo uma ética que valoriza o respeito e a responsabilidade pela natureza e seus elementos, como os rios, que não devem ser vistos apenas como recursos, mas como sujeitos com direitos próprios. No Brasil, iniciativas como a tentativa de conceder personalidade jurídica ao rio Doce após o desastre de Mariana destacam a urgência de proteger nossos recursos hídricos. Embora ainda faltem mecanismos legais sólidos, a discussão ética já representa um marco importante no avanço dessa pauta. Assim, a bioética ambiental contribui para equilibrar as necessidades humanas e a preservação do meio ambiente, reconhecendo que a sobrevivência de todas as formas de vida está interconectada. Exemplos globais, como o reconhecimento jurídico do rio Whanganui na Nova Zelândia e a constitucionalização dos direitos da natureza no Equador, demonstram avanços significativos na busca por um equilíbrio ecológico.

Este ensaio foi elaborado para a disciplina de Direito Ambiental, tendo como base as seguintes obras, que fundamentam a reflexão sobre a relação entre os seres humanos e a natureza, e abordam a questão dos rios como sujeitos de direito dentro de uma perspectiva ética e bioética:


DAITX, Vanessa Vitcoski. O ensino de ciências e a visão antropocêntrica. 2010. Monografia (Licenciatura em Ciências Biológicas) – Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2010. Disponível em: https://lume.ufrgs.br/handle/10183/35277. Acesso em: 22 dez. 2024.

SILVA, Camila Almeida da; SILVA, Francisco Sidomar Oliveira da; NICOLLI, Aline Andréia. Educação ambiental: o que pensam os professores que atuam com o ensino de Ciências, no ensino fundamental. XII Encontro Nacional de Pesquisa em Educação em Ciências – XII ENPEC, Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, RN, 25 a 28 de junho de 2019. Disponivel em: https://abrapec.com/enpec/xii-enpec/anais/resumos/1/R0380-1.pdf. Acesso em: 22 dez. 2024.

ZANON, Andrei. O princípio da alteridade de Lévinas como fundamento para a responsabilidade ética. Perseitas, vol. 8, pp. 75-103, 2020. FONDO EDITORIAL FUNLAM Disponível em: https://doi.org/10.21501/23461780.3489. Acesso em: 22 dez. 2024.

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